Ensinar a Aprender - uma reflexão de Reinaldo Polito

Ensinar e aprender
Segundo Reinaldo Polito

Quando reflito sobre a minha trajetória profissional sempre me deparo com a influência dos professores que passaram pela minha vida. Alguns logo cedo, como a minha primeira e inesquecível professora do cursos primário, outros mais recentemente, como o querido Professor Oswaldo Melantonio, inspirador da atividade que abracei. Estes depoimentos contam um pouco da característica, do estilo e do jeito de ensinar de alguns deles.


A personalidade inspiradora de Julieta Esther Amaral

O Grupo Escolar João Manoel do Amaral, no bairro da Fonte Luminosa em Araraquara, era freqüentado por alunos, em sua grande maioria, de classe econômica e social remediada para baixo. De famílias humildes, as crianças não tinham referência do que significava a vida poucos metros além do bairro onde moravam. Só me lembro de dois que tinham pais engenheiros, os outros eram filhos de lavradores, leiteiros, ferroviários, motoristas, pedreiros. Os mais aquinhoados vinham das casas da redondeza do grupo escolar, a Vila Ferroviária, que até hoje continua firme preservando uma bonita tradição com a permanência de muitos dos seus antigos moradores. A escola possuía salas de alvenaria no prédio central, localizado logo após o portão de entrada, e outras, mais precárias, provisórias, na parte do fundo. Se algum psicólogo, especializado em análise comportamental, fizesse um estudo das probabilidades do futuro profissional dessa garotada, com certeza os prognósticos seriam desesperadores. Mas, se as condições dessas crianças e de suas famílias eram assim tão desalentadoras, como muitas conseguiram se destacar e se projetar nas atividades que abraçaram? A resposta é simples e direta - tiveram a sorte de contar com professoras excepcionais. Todas eram bem formadas, inteligentes, de boa estrutura familiar, muito estudiosas e profissionais competentes.

Além de ensinar as matérias escolares, eram também responsáveis pela formação da personalidade daqueles alunos, que um dia precisariam sair de casa para enfrentar uma vida muito diferente da que estavam acostumados. Assim, rapidinho, eu me lembro do nome de algumas dessas heroínas: Rita, Aparecida, Vera, Dorvalina, Terezinha, Elizabethe.
Uma dessas professoras, entretanto, se sobressaia pela personalidade forte e inspiradora, Julieta Esther Amaral. Chegou a ocupar a direção da escola pela naturalidade com que exercia a liderança e por causa de suas iniciativas e capacidade de realização. Quando começava a falar todos se calavam quase que em reverência, diante do poder da sua comunicação. Impunha suas idéias por uma inabalável segurança, ao mesmo tempo em que conquistava por sua meiguice e bondade. Era um prazer ouvi-la.

Sua voz sonora, forte, bem timbrada, preenchia todo o ambiente. Articulava as palavras com facilidade e construía as frases com perfeição. Os outros professores a admiravam e diziam que ela era o próprio exemplo do que ensinava, pois conjugava os verbos e fazia as concordâncias com tanta perfeição que seria possível transcrever o que dizia sem nenhuma revisão. Com seus olhos penetrantes olhava um a um e mantinha a atenção de todos. Era sempre elegante. Bonita, alta, com postura correta, gesticulação graciosa, nunca se descuidava. Sua mensagem sempre tinha sentido e era coerente. Falava com as crianças ou com os outros professores sempre com a mesma consideração. Nós nos sentíamos importantes e respeitados pela maneira como éramos tratados.

Falava de um futuro que não conhecíamos, nem que imaginávamos existir. Era eloqüente quando mostrava que só poderíamos pretender um futuro melhor se nos dedicássemos ao aprendizado. E sua disposição para ensinar era tamanha que todos queríamos aprender. Repreendia com severidade quem não estudava e se mostrava triste quando alguém não conseguia aprender, como se ela própria estivesse fracassando. Vibrava e comemorava como se fosse uma criança com a conquista dos seus alunos e, de longe, acompanhava a trajetória de cada um. Certo dia, quando eu já não era mais seu aluno, me viu com torcicolo. Segurou meu braço e me levou até sua sala - em pouco tempo com alguns puxões e algumas torcidas já tinha posto tudo no lugar. Não sei o que teria sido da minha vida e de muitos de meus colegas se não tivéssemos a felicidade de encontrá-la. Todos os seus alunos, independentemente da atividade que abraçaram e do rumo que deram a sua vida, devem muito das suas conquistas a essa mulher que, mais do que uma professora, foi a grande inspiradora de um futuro diferente, melhor e mais feliz para todos nós.


A pontaria do Professor Ulisses Ribeiro

Matemática sempre foi, para a maioria dos estudantes, matéria para paixão ou sacrifício. Talvez tenha sido a responsável pelos melhores engenheiros e advogados do país. Alguns abraçaram a engenharia por serem muito apegados aos números. Outros se dedicaram à advocacia por detestarem tanto os cálculos. Modificam essa estatística, entretanto, os que tiveram a sorte de ser alunos do Professor Ulisses Ribeiro. Sua maneira própria e alegre de tratar os alunos envolvia e cativava a todos. Em suas aulas a matemática adquiria sentido, objetivo, razão de ser. Com ele era muito fácil entender e gostar da matéria. Quando, por exemplo, aquele professor magro, gentil e sempre sorridente percebia um aluno desatento, punha para funcionar uma de suas inigualáveis habilidades para trazê-lo de volta à realidade. O Mestre andava o tempo todo com o bolso do jaleco cheio de pedacinhos de giz e tinha uma pontaria impressionante. Sem que o aluno percebesse, independentemente da distância, atirava o pedaço de giz, como se joga uma bolinha de gude, e acertava a testa do distraído. Todos se divertiam muito com aquele seu gesto característico e ninguém se sentia agredido ou magoado.

Hoje, quando vejo pessoas perdendo a paciência e se irritando com ouvintes que conversam ou ficam desatentos, lembro-me com saudade da competente comunicação do antigo professor, que fez história nas salas de aula das escolas de Araraquara. Imagino sua utilidade para ensinar com seu exemplo, mostrando como conquistar e manter com alegria e simplicidade a atenção de uma platéia.

Como eu era amigo de seu filho, também Ulisses, hoje respeitado médico anestesista em Araras, de vez em quando ia até sua casa estudar para as provas de matemática. Como o Professor sabia que no fundo eu estava atrás de alguma dica, aparecia com seu sorriso maroto e relacionava todos os exercícios do livro do Oswaldo Sangiorge dizendo que o exame se basearia naquelas questões. Lógico que se fizéssemos, como na verdade fazíamos, todos os exercícios, o aprendizado estaria garantido. Mais uma aula que procuro sempre seguir, pois falar em público é sempre uma prova, e saber tudo o que precisamos transmitir dá confiança e melhores chances de aprovação.
Ulisses Ribeiro foi um grande professor. Além da matemática, ensinou, com seu jeito de ser, como cativar e manter a atenção dos ouvintes de maneira alegre e gentil e foi um exemplo que influenciou muitas gerações araraquarenses.


Um jeito diferente e muito sábio de ensinar

Quero falar de dois professores que fizeram história nas salas de aula de Araraquara – Machadão e Pezza. O primeiro lecionava português, o último ensinava matemática. O Professor Machadão (no aumentativo para se diferenciar de um outro professor chamado Machadinho, que perambulava por escolas da cidade ministrando entre outras matérias também aulas de português), quando precisava reconquistar a atenção dos alunos ou dar uma boa agitada na aula contava histórias sobre a muquiranice do professor Pezza. Era uma festa. A garotada vibrava quando ele revelava que o Pezza era tão sovina que desligava o televisor no momento em que bola saia pela lateral, e só voltava a ligar depois que entrava em jogo novamente, com o intuito de economizar energia.

Ou que ele tomava comprimido amarrado num barbantinho e puxava de volta depois de ter aliviado a dor de cabeça, para reutilizá-lo em outra oportunidade. Se estivesse chegando no final da aula e o Machadão não tomava a iniciativa de contar histórias do pãodurismo do Pezza, os alunos não deixavam passar, e perguntavam se ele não tinha alguma novidade do professor de matemática. E o mestre não frustrava a galera, sempre tinha uma historinha na manga para alegrar a aula.

Já com o Professor Pezza ninguém deixava de prestar atenção na aula. Assim que notava um aluno alheio, desligado da matéria, usava sua tática característica: psiu, psiu, uma argüiçãozinha para o senhor. E coitado daquele que não soubesse as respostas! A avaliação do mestre vinha como se fosse uma sentença capital: para aprender a prestar atenção, hoje o senhor vai ficar com zero de nota. Só havia uma forma de se vingar – na próxima aula do Machadão, pedir que ele contasse mais uma boa história do “carrasco”. Como, por exemplo, aquela em que o Pezza havia comprado duas ratoeiras para pôr no bolso, ficando assim impedido de gastar qualquer centavo.

Cada um com seu estilo, esses dois queridíssimos professores educaram e formaram muitas gerações de araraquarenses que hoje, com certeza, assim como eu, agradecem por terem sido seus alunos.


Tempo de aprender

Se não fosse o dono da bola, Fidel não participaria do time da nossa rua em Araraquara. Sempre que se aproximava alguém chegado numa verborragia, meu amigo Edélcio Margonar, um tremendo gozador, se voltava de costas, disfarçava olhando para cima e sussurrava entre os dentes: cuidado que esse é perigoso. A brincadeira pegou e se transformou numa espécie de código – era só aparecer um falador que alguém do grupo comentava: esse é perigoso. Hoje, distante desses amigos de infância, não tenho mais com quem usar o código de alerta, mas, assim que vislumbro um tagarela me lembro da reação da garotada e falo com meus pensamentos: ah, esse lá na minha rua ficaria na regra três!

Entretanto, nada como a vida e os bons professores para nos mostrar um novo caminho a percorrer. Há poucos dias levei Oswaldo Melantonio, o melhor e mais importante professor que conheci em toda a vida, para conhecer um querido amigo, outro Osvaldo, Osvaldo Marchesi, um gênio da publicidade. Chegamos para almoçar por volta de meio dia e, por incrível que pareça, ele conseguiu de maneira simpática e envolvente prender nossa atenção conversando e contando histórias cativantes e arrancando gostosas risadas de todos por mais de seis horas.

Assim que chegou, em poucos minutos, com a perspicácia dos seus 80 anos, ele já havia descoberto quais os assuntos que interessavam a cada um e, com muita habilidade, desenvolveu todos seus temas prediletos voltados para o gosto dos ouvintes. Quando, por exemplo, falava das personagens da história brasileira, voltava-se para o meu amigo e chamava sua atenção para os sentimentos de cada uma delas, pois esse tipo de comentário era o que motivava o anfitrião. O mais curioso é que durante aquele encontro ele praticamente falou sozinho e, no final, todos, sem exceção, comentaram que tinha sido uma das conversas mais agradáveis de que participaram.

Que aula! Se associarmos nossos temas ao interesse e ao conhecimento dos ouvintes, especialmente nas conversas sociais, teremos o tempo todo pessoas interessadas em nos ouvir e, mesmo que viéssemos a freqüentar a turminha do Edélcio Margonar, não correríamos o risco de ser rotulados de perigosos. Obrigado professor Oswaldo Melantonio por mais essa extraordinária aula de comunicação. Daqui para frente, além de usar esses ensinamentos em minhas conversas, também terei mais uma aula prontinha para os novos alunos. Aliás, sem demora, já comecei por este texto.


Acumulando centímetros de experiência

Abdalla foi um profeta dos novos tempos. Sua melhor aula como professor de microeconomia não teve nada a ver diretamente com os conceitos microeconômicos. Ele passou toda primeira aula do curso explicando porque ninguém deveria trabalhar mais de três anos numa mesma empresa. Sua filosofia era bastante simples: se você trabalhar três anos numa empresa vai aprender dez centímetros, se ficar mais três anos vai passar de dez para doze. Mudando de empresa, com mais três anos você vai aprender mais dez, isto é, oito a mais do que se tivesse permanecido na primeira.

Houve uma época em que trabalhar muito tempo numa empresa era um tremendo orgulho para o empregado. Como professor peguei o rabinho desse momento, convivendo com alguns poucos remanescentes da fase pré-FGTS. Eu me lembro que nessa época durante os cursos de expressão verbal in company que ministrava, pedia que todos se apresentassem, e o tempo de casa parece que fazia parte do nome: meu nome é José Carlos da Silva, estou na companhia há 25 anos e ocupo a função de gerente financeiro. Quando alguém dizia que estava, por exemplo, trabalhando na firma só há 12 anos, era olhado de cima para baixo, como se os outros quisessem dizer – esse aí ainda nem tirou as fraldas, tem longa estrada pela frente e muito para aprender. Era uma história com começo, meio e fim - arrumava um emprego, permanecia fiel a mesma empresa até se aposentar, recebia um belíssimo relógio de ouro e ia viver seus últimos dias passeando na pracinha.

Está certo que a ordem hoje é estar sempre pronto para mudança, mas alguns levaram essa regra ao pé da letra, caíram no exagero e nem chegam a esquentar a cadeira. Há pouco tempo precisei contratar uma nova funcionária e analisei cuidadosamente o currículo de uma moça indicada por um conhecido. Sua trajetória profissional me deixou espantado – três meses numa empresa, cinco na seguinte, dois na última. O maior tempo de permanência foi de nove meses. Refleti bastante e me lembrei do Abdalla, imaginando o que ele diria diante de uma situação extrema como essa. Se não estou ficando maluco, me pareceu ter ouvido um debochado sussurro do inesquecível mestre: somando tudo não chega a dois centímetros, Polito.

 

Reinaldo Polito
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